Mãe de dois, sem rede de apoio e com o sonho de ser médica: conheça Débora Gomes, barrada no Enem por amamentar o filho

A estudante recifense recebeu o Vai Cair No Enem e contou como estão os dias desde o ocorrido no último domingo (21)
Débora Gomes - Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Era final da tarde quando Débora Gomes, de 26 anos, recebeu a reportagem do Vai Cair No Enem. Antes de chegar na casa de três cômodos, uma kitnet localizada na Ilha de Joana Bezerra, área central do Recife, confirmamos com alguns vizinhos se o endereço estava correto. “Débora, que está famosa”, disse uma vizinha. De fato, o ocorrido no último domingo (21), primeiro dia de aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mudou a rotina da jovem. Ao entrar no imóvel que já levava para o único quarto, Débora terminava de organizar a filha mais velha, Rebeca, de três anos, que relutava para não pentear os cabelos. No mesmo espaço, a tia, Flávia Gomes, cuidava do sobrinho caçula, Gabriel, de cinco meses. 

A terça-feira estava agitada para Débora, que avisou dos compromissos anteriores e o quanto, desde o último final de semana, os dias estão mais corridos do que de costume. Enquanto colocava um laço rosa na filha, a estudante relatou que nem sempre conta com a tia. “Ela não trabalhou hoje, por isso, está me ajudando. Não tenho rede de apoio sempre. Sou eu para dar conta de tudo, casa, filhos, marido, estudo”, comenta. Antes da entrevista começar, Débora pede um tempo, um banho. Está exausta das lives, entrevistas, maternidade e afazeres domésticos. Mas, antes, é necessário realizar a troca da fralda e banhar o filho. 

Com todas as demandas feitas, a jovem senta para iniciar a entrevista. Ao Vai Cair No Enem, Débora explica como estão os dias, assim como, as inúmeras mensagens, de pessoas próximas ou desconhecidos, que tem recebido. “Eu ainda não consegui ler tudo, é muita mensagem”, mostrando o celular para a reportagem. Ela falou que não imaginava que ao perder o primeiro dia de provas do Enem teria tanta repercussão. Atualmente, ela acumula 18 mil seguidores em uma rede social. “Eu fiquei surpresa, porque achei que seria normal, perdi a prova e acabou”, lembra enquanto amamentava. 

Débora Gomes, filhos e tia
Débora Gomes (camisa azul), os filhos, Rebeca e Gabriel, e a tia Flávia Gomes. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Portões fechados

Como de costume, Débora acordou por volta das 6h da manhã no último domingo (21). Antes de sair para realizar as provas de Linguagens, Ciências Humanas e Redação, deixou a casa organizada, comida pronta e o filho abastecido de leite materno. “Eu dei muito mamar para ele, para ele ficar abastecido e não sentir falta enquanto eu fazia a prova. Deixei tudo pronto, quando foi meio-dia, pedi um carro de aplicativo. Quatro motoristas cancelaram a corrida, só consegui na quinta tentativa”, relembra e aponta que as desistências teriam relação com a localidade onde reside. 

Dentro do carro, ela começou a perceber que não chegaria a tempo para realizar a avaliação. “Perguntei em quanto tempo a gente chegaria lá [Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)], ele me respondeu que em dois minutos chegaríamos lá”. Débora expõe que chegou um minuto após o fechamento dos portões, que foram trancados às 13h. “Expliquei o que tinha acontecido, precisava colocar para fora. Falei que estava amamentando o meu filho, que não era justo”, lamentou enquanto explicava que conseguiu se inscrever nesta edição do Enem por meio de isenção da taxa, no valor de R$ 85. 

Rua da casa de Débora Gomes
Rua da Casa de Débora, localizada na Ilha de Joana Bezerra. Foto: Rafael Bandeira/LeiaJáImagens

Débora relata que ouviu como resposta que “não poderiam fazer nada” e foi cercada por veículos de comunicação. “No momento, eu não quis falar. Pensei: 'fechou as portas para mim, tô (sic) ferrada'. Algumas pessoas me chamaram, mas eu não tinha condições e nem queria falar. Mas, uma pessoa, Ayla, o nome, disse que era importante as pessoas saberem da minha história, o que tinha acontecido. Na hora, cheguei a me emocionar e chorar, sou muito chorona”, conta.

Como a maioria dos candidatos do exame, Débora se preparou e dedicou o pouco tempo “livre” que tinha para os estudos. Trazendo ao centro debate a realidade de mães vestibulandas sem rede de apoio e uma rotina com raras horas de descanso, mesmo assim, a estudante não ficou ilesa de comentários negativos nas redes sociais. “Recebi algumas, poucas, mensagens negativas. Provavelmente, a pessoa não sabe da realidade”, pondera.

Em Pernambuco, o primeiro dia de provas do Enem teve uma abstenção de 24,6%, ou seja, 43 mil candidatos do total de 176.682 inscritos no exame. No Brasil, a taxa de ausentes nesta edição foi de 26%, de acordo com dados preliminares divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Medicina por amor

O Enem 2021 não seria o primeiro de Débora Gomes. Em duas edições anteriores do exame, ela, que é oriunda de escola pública, tentou ingressar no curso de medicina, mas sem sucesso. Com livros doados por uma vizinha, que é profissional da saúde, e um celular, que usa para acompanhar vídeos, aulões e lives, ele se sentia mais próximo da graduação que tanto almeja. Entretanto, ao perder a prova, viu o desejo de se tornar médica adiado mais uma vez. Questionada sobre em qual área deseja atuar, a estudante responde rapidamente: “pediatria ou neurocirurgia".

Em 2013, após a morte da mãe, que era técnica de enfermagem, Débora interrompeu os estudos. No entanto, no ano seguinte, conseguiu concluir o ensino médio. “Minhas notas eram sempre boas, entre oito e 10. Meu histórico escolar sempre teve notas muito boas”, garante.  Para esta edição do Enem, a recifense criou um perfil no Instagram dedicado apenas aos estudos. “Nunca fui muito de rede social, de ter muita gente. Já tive uma conta pessoal, mas apaguei e fiz uma só para estudos, tinha poucos seguidores, acompanhava apenas algumas amigas, páginas e professores que me ajudaram nos estudos para a prova.”

À reportagem, Débora fala sobre a necessidade de ter um notebook e, principalmente, vagas para os dois filhos em creches municipais da cidade. “As creches nunca têm vaga. Eu preciso muito disso para me dedicar aos estudos e voltar a trabalhar”, reforça. Desempregada há pouco mais de um ano, ela relata que sente na pele o preconceito, por parte de algumas recrutadoras, ao dizer nas seletivas que tem dois filhos, sendo um com cinco meses. “Participei de três entrevistas de emprego e quando eu disse que tenho dois filhos, um de cinco meses, já senti que as coisas mudaram. Começaram a perguntar muito sobre com quem eu deixaria ele para trabalhar, essas coisas”, contou. No momento, o sustento da família vem dos “bicos” realizados pelo marido de Débora. 

Diante da corrente de solidariedade, construída dentro e fora das redes sociais, a jovem, recentemente, foi contemplada com bolsas de estudos oferecidas por uma faculdade da capital pernambucana, no curso de direito, e um preparatório para o Enem. Mesmo grata, Débora Gomes ressalta que ainda tem esperanças de conseguir ingressar em medicina como bolsista. “Eu acredito que Deus “tá” preparando algo melhor para mim, eu acredito nisso. É tudo na vontade de Deus. Eu acredito que vai acontecer alguma coisa, mas eu não sei o que é. Não sei se vou conseguir, mas eu acredito que eu “vá” conseguir essa vaga em medicina”, profetiza. 

 Confira a entrevista completa:

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